sábado, 21 de dezembro de 2013

Prólogo







UMA CORDILHEIRA DE ESCOMBROS

ONDE NOSSA NARRADORA APRESENTA:

ela mesma
as cores
e a roubadora de livros
MORTE E CHOCOLATE
Primeiro, as  cores. Depois, os  humanos.  Em  geral,  é  assim  que  vejo  as
coisas. Ou, pelo menos, é o que tento.
• EIS UM PEQUENO FATO •
Você vai morrer.


Com  absoluta  sinceridade,  tento  ser  otimista  a  respeito  de  todo  esse
assunto,  embora  a  maioria  das  pessoas  sinta-se  impedida  de  acreditar  em  mim,
sejam  quais  forem  meus  protestos.  Por  favor,  confie  em  mim.  Decididamente,  eu
sei  ser  animada,  sei  ser  amável.  Agradável.  Afável.  E  esses  são  apenas  os  As.  Só
não me peça para ser simpática. Simpatia não tem nada a ver comigo.
• REAÇÃO AO FATO SUPRACITADO •
Isso preocupa você?
Insisto — não tenha medo.
Sou tudo, menos injusta.
— É claro, uma apresentação.
Um começo.
Onde estão meus bons modos?
Eu  poderia  me  apresentar  apropriadamente,  mas,  na  verdade,  isso  não  é
necessário.  Você  me  conhecerá  o  suficiente  e  bem  depressa,  dependendo  de  uma
gama diversificada de variáveis. Basta dizer que, emalgum ponto do tempo, eu me
erguerei  sobre  você,  com  toda  a  cordialidade  possível.  Sua  alma  estará  em  meus
braços.  Haverá  uma  cor  pousada  em  meu  ombro.  E  levarei  você  embora
gentilmente.
Nesse  momento,  você  estará  deitado(a).  (Raras  vezes  encontro  pessoas  de
pé.)  Estará  solidificado(a)  em  seu  corpo.  Talvez  haja  uma  descoberta;  um  grito
pingará  pelo  ar.  O  único  som  que  ouvirei  depois  disso  será  minha  própria
respiração, além do som do cheiro de meus passos.
A  pergunta  é:  qual  será  a  cor  de  tudo  nesse  momento  em  que  eu  chegar
para buscar você? Que dirá o céu?
Pessoalmente,  gosto  do  céu  cor  de  chocolate.  Chocolate  escuro,  bem
escuro.  As  pessoas  dizem  que  ele  condiz  comigo.  Mas  procuro  gostar  de  todas  as
cores  que  vejo  o  espectro  inteiro.  Um  bilhão  de  sabores,  mais  ou  menos,  nenhum
deles  exatamente  igual,  e  um  céu  para  chupar  devagarinho.  Tira  a  contundência
da tensão. Ajuda-me a relaxar.
• UMA PEQUENA TEORIA •
As pessoas só observam as cores do dia no começo e no fim, mas, para mim, está
muito claro que o dia se funde através de uma multidão de matizes e entonações, a
cada momento que passa.
Uma só hora pode consistirem milhares de cores diferentes.
Amarelos céreos, azuis borrifados de nuvens. Escuridões enevoadas.
No meu ramo de atividade, faço questão de notá-los.
Já  que  aludi  a  ele,  o  único  dom  que  me  salva  é  a  distração.  Ela  preserva
minha  sanidade.  Ajuda-me  a  aguentar,  considerando-se  há  quanto  tempo  venho
executando  este  trabalho.  O  problema  é:  quem  poderia  me  substituir?  Quem
tomaria meu lugar, enquanto eu tiro uma folga em seus destinos-padrão de férias,
no estilo resort, seja ele tropical, seja da variedade estação de inverno? A resposta,
é  claro,  é  ninguém,  o  que  me  instigou  a  tomar  uma  decisão  consciente  e
deliberada  —  fazer  da  distração  minhas  férias.  Nem  preciso  dizer  que  tiro  férias  à
prestação. Em cores.
Mesmo  assim,  é  possível  que  você  pergunte:  por  que  é  mesmo  que  ela
precisa de férias? De que precisa se distrair?
O que me traz à minha colocação seguinte.
São os humanos que sobram.
Os sobreviventes.
É  para  eles  que  não  suporto  olhar,  embora  ainda  falhe  em  muitas
ocasiões.  Procuro  deliberadamente  as  cores  para  tirá-los  da  cabeça,  mas,  vez  por
outra,  sou  testemunha  dos  que  ficam  para  trás,  desintegrando-se  no  quebra-cabeça do reconhecimento, do desespero e da surpresa. Eles têm(orações vazados.
Têm pulmões esgotados.
O que por sua vez, me traz ao assunto de que lhe estou falando esta noite,
ou  esta  manhã,  ou  seja  lá  quais  forem  a  hora  e  a  cor.  É  a  história  de  um  desses
sobreviventes perpétuos uma especialista em ser deixada para trás.
É só uma pequena história, na verdade, sobre, entre outras coisas:
*  Uma menina
*  Algumas palavras
*  Uma cor de onista
*  Uns alemães fanáticos
*  Um lutador judeu
*  E uma porção de roubos
Vi três vezes a menina que roubava livros.
AO LADO DA LINHA FÉRREA
Primeiro aparece uma coisa branca.Do tipo ofuscante.
E  muito  provável  que  alguns  de  vocês  achem  que  o  branco  não  é
realmente  uma cor,  e  todo  esse  tipo batido de  absurdo.  Bem,  estou  aqui para  lhes
dizer  que  é.  O  branco  é  sem  dúvida  uma  cor  e,  pessoalmente,  acho  que  você  não
vai querer discutir comigo.
• UM ANÚNCIO TRANQUILIZADOR •
Por favor, mantenha a calma, apesar da ameaça anterior.
Sou só garganta...
Não sou violenta.
Não sou maldosa.
Sou um resultado.
Sim, era branco.
Era  como  se  o  globo  inteiro  estivesse  vestido  de  neve.  Como  se  houvesse
enfiado  aquilo, do  jeito  que  se  enfia  um  suéter.  Junto  à linha  de  trem,  as  pegadas
afundavam até as canelas. As árvores usavam cobertores de gelo.
Não  podiam  simplesmente  deixá-lo  ali  no  chão.  De  momento,  não  era  um
problema  tão  grande,  mas,  logo,  logo,  a  linha  seria  desobstruída  mais  adiante  e  o
trem precisaria seguir viagem.
Havia dois guardas.
Havia uma mãe com sua filha.
Um cadáver.
A mãe, a menina e o cadáver continuaram obstinados e calados.
—  Bem, oque mais você quer que eu faça?
Os  guardas  eram  um  alto  e  um  baixo.  O  alto  sempre  falava  primeiro,
embora  não  fosse  o  responsável.  Olhava  para  o  menor,  mais  rechonchudo.  O  do
rosto vermelho e suculento.
— Bem —foi a resposta — não podemos só deixá-los assim, não é?
O alto estava perdendo a paciência. — Porque não?
E  o  baixote  por  pouco  não  explodiu.  Ergueu  os  olhos  para  o  queixo  do
altão e gritou:
—  Spinnst  du?!  Você  está  variando?  —  A  aversão  em  suas  bochechas
adensava-se  a  cada  momento.  Sua  pele  foi-se  alargando.  —  Vamos  —  disse,
tropeçando na neve. — Levaremos todos os três de volta, se for preciso. Faremos a
notificação na próxima parada.
Quanto  a  mim,  eu  já  havia  cometido  o  mais  elementar  dos  erros.  Não
consigo  lhe  explicar  a  intensidade  de  minha  decepção  comigo  mesma.
Originalmente, eu tinha feito tudo certo:
Estudei  o  céu  ofuscante,  branco  feito  neve,  que  estava  na  janela  do  trem
em  movimento.  Praticamente  o  inalei,  mas,  mesmo  assim,  titubeei.  Cedi  —  fiquei
interessada. Na menina. Fui vencida pela curiosidade e me resignei a ficar o tempo
que meu horário permitisse, e observei.
Vinte e três minutos depois,quando o trem estava parado, desci com eles.
Havia uma alminha em meus braços.
Postei-me meio à direita.
A  dupla  dinâmica  de  guardas  do  trem  voltou  à  mãe,  à  menina  e  ao
corpinho  masculino.  Lembro-me  claramente  de  que  estava  respirando  alto  nesse
dia.  Fiquei  surpresa  com  o  fato  de  os  guardas  não  me  notarem  ao  passarem  por
mim. Agora o mundo estava afundando, sob o peso de toda aquela neve.
Uns  dez  metros  à  minha  esquerda,  talvez,  postava-se  a  menina  pálida,  de
estômago vazio, enregelada.
Sua boca tremia.
Seus braços frios estavam cruzados.
Havia lágrimas cristalizadas no rosto da roubadora de livros.
....

Nenhum comentário:

Postar um comentário